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Um ode à farinha de mandioca


Publicado em 29/09/2016

Segundo uma grande pensadora, “alguns produtos foram essenciais para o desenvolvimento de toda civilização humana ao longo dos séculos”. Então estou aqui saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil. Idiotices a parte, não é preciso ser nenhum conhecedor de história para saber que ninguém conquistou a mandioca, ela nos conquistou! A origem mais provável desta planta, de folhas e raízes generosas, é o cerrado brasileiro e a partir daí conquistou espaço na Amazônia, na América Central e no mundo.

De acordo com a lenda, uma índia engravidou da estrela vésper, que veio à Terra em figura de homem, e deu à luz uma linda menina de nome Mani, de pele muito branca e que cresceu feliz brincando pela tribo. Um dia ela adoeceu e, apesar de todas as pajelanças, faleceu muito cedo e foi enterrada dentro da própria oca, como era tradição daquele povo. Regada com as lágrimas de toda a tribo, de sua sepultura brotou uma planta cujas raízes tinham o interior muito branco, branco como a pele de Mani.

Esta raiz, a mandioca (casa de Mani), tornou-se a base alimentar de um povo, ou de muitos. Manipulada e consumida de várias maneiras, mas principalmente como farinha, cujos vestígios de pilões para sua moagem datam de dois mil anos na região norte do Brasil. Em 1551, o padre jesuíta Manuel da Nóbrega, nas cartas em que apresentava a nova colônia à Coroa Portuguesa, já se referia ao beiju e as farinhas fabricadas pelos indígenas a partir de uma raiz ralada e seca ao sol ou em fornos de barro.

O processo era simples e artesanal, como é até hoje, utilizando equipamentos rústicos e mão de obra familiar em pequenas unidades rurais, as casas de farinha, de onde saem farinhas que mudam de nome, textura e cor conforme a região em que são fabricadas. Basicamente são dois processos: a seca, proveniente das raízes lavadas, descascadas, raladas, prensadas, peneiradas e secadas em forno; e a farinha d´água, onde as raízes são colocadas na água e deixadas para fermentar por tempo variado e, depois de amolecidas, são peneiradas e secas de maneiras diversas, ou usadas como massa.

Da farinha d´água, fazemos a nossa tapioca e a massa puba, que é o principal ingrediente de um dos maiores ícones da nossa doçaria, o bolo Souza Leão. Engana-se quem confia na branca inocência desta farinha como algo leve, light e quase sem peso na nossa dieta: é rica em ferro, cálcio, magnésio, manganês e boa fonte de vitamina B6, além de bastante calórica (350calorias/100gramas). Mas, para mim, como cozinheiro, o que importa é o sabor e a textura, presente em cada uma das muitas farinhas que uso.

A farinha de carimã, de Pernambuco, que é a massa puba, feita com a mandioca fermentada, seca naturalmente, perfeita para mingau e cuscuz de coco. Da Bahia, vem a farinha bijusada quebradinha, que é feita com a goma peneirada numa camada fina sobre uma chapa de ferro quente, formando pequenos beijus disformes e crocantes, que, acreditem, é consumida com café ou leite, quase como um “sucrilhos” de mandioca, aliás, também é encontrada torrada com coco e açúcar, a granola do sertão baiano.

A farinha de tapioca é típica do Pará: grânulos de amido estourados em chapa quente como pipocas, fica semelhante a um isopor, perfeito para acompanhar a polpa de açaí ou bacaba salgada e doce. Do Amazonas tem a farinha d’água de Uarini, tipo ovinha: a mandioca amarela é amolecida em água, peneirada e rolada com a mão até formar bolinhas. Com ela se faz o típico mingau doce com leite de castanhas que é a essência do sabor amazônico.  

Já a farinha de mandioca do litoral catarinense é fina como a farinha de trigo, resultado de um erro de projeto: foram instalados moinhos de farinha de trigo em regiões onde o trigo não prosperou, e começaram a processar a mandioca nestes moinhos. Como resultado, temos uma farinha única, própria para fazer o pirão de leite ou o pirão de náilon. E de mandioca em mandioca, de farinha em farinha, se desenhou a culinária brasileira, variando de região para região devido ao clima, a espécie da planta e a particularidade de cada povo!

Vamos saudar à mandioca!