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Portinari, Graciliano Ramos e o bebê reborn, por Luzia Almeida
A fome infantil do sertão ganha voz em obras clássicas, mas é ignorada em um mundo que cultua bebês de plástico

Arte e literatura denunciam a miséria do sertão, enquanto o luxo do bebê reborn revela uma sociedade em conflito entre realidade e fantasia. (Foto: Pixabay)

Publicado em 06/06/2025

O quadro “Retirantes” (1944) de Cândido Portinari retrata a miséria do sertão brasileiro, uma miséria explícita, miséria familiar. O quadro não representa uma hipérbole, já que pessoas em situações de extrema penúria morrem de fome e de sede. Neste quadro além do espanto de quem o contempla há uma denúncia social da parte do pintor brasileiro que na representação artística expõe indignado sua opinião sobre o tema da seca no Brasil. No mesmo sentido, no romance “Vidas secas” (1938), de Graciliano Ramos, observa-se esta indignação no contexto de miséria de uma família de retirantes também do sertão brasileiro. A fome era atroz:

“Os juazeiros aproximaram-se, recuaram-se, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.

— Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-o, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse”. Mas a fome havia nocauteado o menino mais velho que sem água e sem comida não tinha mais forças para caminhar.

E é neste contexto de arte e de literatura carregadas de talento na representação de fome e de miséria humana que apresentamos o bebê reborn, ou melhor dizendo, o boneco reborn: sem condições de engatinhar, de caminhar, de crescer e de dizer “mamãe”: uma dura realidade, ainda que se tente mascarar com tentativas inúteis de vacinação e de batismo. O bebê reborn não precisa de anticorpos, ainda que não tenha passado pela amamentação, ele nunca terá doença alguma. Seu material genético desprovido de DNA invalida todo e qualquer vírus e há nele uma redoma “epitelial” (desculpem-me a metáfora) que neutraliza toda e qualquer bactéria. E, quanto ao batismo? Eis a questão! Por que alguém quereria batizar um boneco? Perguntas assim, em pleno século XXI, em plena era tecnológica têm respostas encharcadas de motivações. E não tenho essas motivações catalogadas, mas penso que estão vinculadas às tendências midiáticas, ao consumismo e à fuga da realidade (própria dos poetas ultrarromânticos).

É romântico ter um bebê reborn de vinte mil reais: é um luxo!... Mas é interessante apenas para a mídia, para as redes sociais e para as teses de psicologia. Cuidar de um boneco como se fosse um bebê de verdade é algo que ultrapassa a fronteira da realidade. Há uma grande diferença entre realidade e fantasia e, por vezes, somos encantados com a fantasia, mas não ao ponto de sermos dominados por ela. Se ela nos domina perdemos o chão e sem chão sucumbiremos. Por outro lado, ninguém pode viver uma realidade crua 24 horas. Precisamos de amor, de ternura e do fantástico das narrativas para sobreviver. Encontrar o equilíbrio é a grande tarefa na contemporaneidade.

Cândido Portinari e Graciliano Ramos retrataram a dureza da vida dos retirantes do sertão brasileiro. Retrato cruel de uma realidade infantil sem ficção: desmaio, maldição, pancada, sede, fome e barriga inchada de esquistossomose... O bebê reborn não sabe nada de sertão!...

 

 

 

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Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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