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O vermelho da segunda página, por Luzia Almeida
Nesta crônica, Luzia nos traz uma história de amor em um sopro

Um papel amassado pode trazer histórias de amor (e desamor) (foto:Imagem da Ilha) ** CLIQUE PARA AMPLIAR

Publicado em 13/01/2024

       Era sábado e Douglas não se sentia bem. Ele estava profundamente incomodado com sua situação amorosa que, de uns tempos pra cá, tornou-se odiosa. Não precisava de muita coisa pra ser feliz, era um sujeito pacato e se ajustou ao seu salário que a companheira se dispunha a escarnecer: “Faça alguma coisa!”; “Como viveremos com este salário?”. “Você não pode se conformar desse jeito!...”. Era uma falação contínua, sem trégua para uma possível mudança. E, assim, sofrendo as palavras da mulher a cada dia, Douglas começou a emagrecer. Sutilmente seu rosto foi afinando, afinando... que no trabalho, uma colega disse baixinho no seu ouvido: “Me ensina essa dieta...”. Ele espantou-se, não com a informação sobre sua magreza, porque sabia que suas calças estavam folgadas; espantou-se com o reconhecimento dos outros que estavam percebendo. E Paula? Paula não percebia que ele estava emagrecendo? Sim! Ela percebia, mas não se incomodava.

          Era sábado e Paula disse-lhe que iria sair. Ele até tentou um convite pra um passeio no balneário. Mas ela disse “Detesto aquela gente!... Vou visitar minha irmã”. E saiu batendo a porta.

          Douglas ficou profundamente magoado com a rejeição dela. Sentiu-se desamparado, mas lembrou-se do caderno novo para escrever poemas. Resolveu escrever alguma coisa pra aliviar seu coração. Um texto ameno que contasse a ela de seus projetos para o futuro. Queria fazer um curso à noite e depois do curso tentaria uma promoção. Ele sabia que Paula não teria paciência para ouvi-lo... então escreveu na primeira página: “Meu amor, sei que você...” E continuou escrevendo de uma forma meiga e as frases foram se formando e o que era prosa, de repente se transformou em versos. A página não dava mais espaço ao coração do homem. Última linha. Ele parou de escrever e leu. Mas sentiu que atrás de cada palavra havia uma máscara e que a Paula da página não era a que saiu batendo a porta; era uma idealização. Então, ele arrancou a página com fúria, amassou-a e jogou-a pela janela.

          Ele levantou-se do sofá, foi até a cozinha beber água. Mas a água não aliviou seu coração aflito. Viu as louças de ontem na pia. Abriu a geladeira e tirou um pacote de carne congelada. Não! Ele não queria lavar louças e cozinhar só pra ele.

          Sozinho no meio da cozinha ele rodou de um lado para o outro. Pegou o pacote de carne que estava em cima da pia e colocou-o de volta no congelador. Voltou a sala e viu o caderno com tamanha página em branco e escreveu:

          “Paula, faz tempo que estou sentindo...” Ele escreveu como quem vai à guerra, escreveu com desespero, não poupou adjetivos para descrever o que estava sentindo. Indignado e infeliz ele terminou o texto sem versos, nestes termos: “Ainda bem que não tivemos filhos e não oficializamos nossa relação”. Não era tão fácil assim deixar pra ela a página em carne viva. Mas deveria procurar outro rumo. Lembrou-se de uma tia que morava sozinha e pensou que seria bom visitá-la, passaria uns dias com ela até achar outra moradia.  Pensava: “Nada de despedidas.”

          As roupas e os livros ele arrumou em três malas. Era tudo o que tinha. A casa, os móveis, tudo era de Paula. Ele chamou um carro pelo aplicativo e indicou o endereço da tia que não morava longe.

          Quando Paula chegou, viu o papel amassado que Douglas havia jogado pela janela e parou para ler. Pensou “Que idiota!”. Depois abriu a porta.


Sobre o autor

Luzia Almeida

Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação


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