A Ópera “Cobra Norato” e o “Tatu” encantado, por Luzia Almeida
A força da poesia, da música e da encenação amazônica ressoou como resistência e beleza no coração de Belém

Não é fácil escrever sobre tanto talento reunido numa única ópera, mas mesmo assim, vacilando com os adjetivos, vou me aventurar nesta construção necessária porque a arte também tem suas urgências, como de ser arrebatado por um poema ou por um tatu.
As palavras da diretora artística da ópera Carla Camurati já anunciam o belo: “Dirigir “Cobra Norato” é atravessar um território onde a música e a palavra se misturam como rios na floresta. Mergulhar numa criação contemporânea inspirada no poema de Raul Bopp tem sido uma experiência transformadora. Bopp nos leva para uma Amazônia, onde tudo pulsa: “árvores folhudas, raízes afogadas e sapos beiçudos”. É uma floresta que fala, grita e resiste. [...] Dar forma a esse mundo, construí-lo com os cantores e criadores, é como “entrar num igarapé e sair numa estrela”. “Entrar num igarapé” é um estilo de vida. O que é um igarapé? É a própria Amazônia!... E o que seria “sair numa estrela”? Falar de estrelas dentro de ópera é singular. São constelações que fizeram dormir o urbanismo da cidade que em nós habitava para o silêncio das vozes: Cobra Norato (Jean William), Filha da Rainha (Marly Montoni), Tatu da Bunda Seca (Idaías Souto), Cobra Grande (Anderson Barbosa), Rainha Luzia (Lys Nardoto), Pajé (Ytanaã Figueiredo), Árvore Mãe (Elizabeth Moura) e Joaninha Vintém (Ione Carvalho).
Difícil destacar um cantor-ator desta ópera apresentada recentemente no Theatro da Paz em Belém, mas quero considerar o inédito do talento do barítono Idaías Souto representando o “Tatu da Bunda Seca”. Quando, numa entrevista, perguntei sobre este personagem, ele respondeu: “Realmente o personagem é muito bom, para mim foi desafiador interpretá-lo pois tatu não é um animal cujo seus hábitos sejam muito conhecidos, e para minha surpresa existem diversos tipos de tatu. Inicialmente imaginava só o tatu bola, mas essa espécie não atende a todas as características propostas pelo libreto de Bernardo Vilhena e da música de André Abujanra. Por exemplo, uma espécie que atenderia ao nome tatu da bunda seca, seria uma espécie denominada de tatu do rabo mole... e por aí vai... a construção não foi tão simples como parece, tive que imprimir um certo sotaque não só na fala, mas no canto também, fora a adaptação da respiração para poder cantar naquela postura nada favorável para o canto lírico”. Assim, Idaías definiu sua apresentação, mas é necessário que ele saiba de sua genialidade nesse mosaico que faz adormecer uma saudade de vida. E o encantamento do tatu conseguiu embalar a doçura de um poema que é vida amazônica.
O poema de Raul Bopp nos indica um verde vivo e pujante: “Um dia / ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim. / Vou andando, caminhando, caminhando; / me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes. / [...] / e mando chamar a Cobra Norato. / — Quero contar-te uma história: / [...] / Faz de conta que há luar. / A noite chega mansinho. / Estrelas conversam em voz baixa. / O mato já se vestiu. / Brinco então de amarrar uma fita no pescoço / e estrangulo a cobra. / Agora, sim. / me enfio nessa pele de seda elástica / e saio a correr mundo: / Vou visitar a rainha Luzia. / Quero me casar com sua filha”. Todo o imaginário amazônico perfilado em versos. É uma riqueza esse pertencimento único a partir de um “faz de conta que há luar”.
Às vezes, o encantamento trazido por uma ópera pode proporcionar muito mais do que pensamos, muito mais do que esperamos... muito mais!...
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Sobre o autor

Luzia Almeida
Luzia Almeida é professora, escritora e mestra em Comunicação
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